OBRIGATÓRIO
Excerto de HAMLET de William Shakespeare
CENA II
O átrio do castelo com assentos de um e de outro lado como para uma representação. Ao fundo um pano esconde outro palco.
Entram HAMLET e três actores; saem detrás do pano.
HAMLET (ao primeiro actor) Peço-te que digas a tirada como eu a pronunciei, com a língua ágil, com uma dicção certa. Mas se mastigas as palavras, como fazem muitos dos nossos actores, então antes quero que seja o homem dos pregões a dizer os meus versos. E também não esbracejes muito; assim. Usa tudo com medida. Pois na própria torrente, tempestade, ou mesmo no turbilhão da tua paixão, tens de conquistar e criar um equilíbrio que a tudo dê harmonia. Ai, doí-me até a alma quando ouço um moço robusto, cheio de cabelos postiços, a rasgar a paixão em tiras e farrapos para furar os ouvidos da gente da plateia que, na sua maior parte, só gosta de mímicas inexplicáveis e de barulho. Eu gostava de ver esse actor chicoteado, por ser mais Termagante do que Termagante; ele herodiza de mais o Herodes. Peço-te: não cais nesse defeito.
1º ACTOR – Garanto a Vossa Alteza que não.
HAMLET – Também não te deves dominar de mais, mas deixa que a tua discrição seja o teu guia. Ajusta a acção com a palavra e a palavra com a acção; com um cuidado especial em não forçar a modéstia da natureza. Pois tudo quanto é exagerado se desliga do objecto próprio do teatro, cuja finalidade, tanto no começo como agora, foi e é, por assim dizer, erguer um espelho em frente à natureza; para mostrar à virtude o seu próprio rosto, ao mal a sua própria imagem, e a cada século e a cada encarnação do tempo a sua forma e o seu cunho… Porém, se a representação for exagerada ou desacertada, embora faça rir os ignorantes, só pode afligir os que são conscientes. E a censura de uma só pessoa consciente deve, na vossa estima, ter mais peso do que um teatro inteiro de ignorantes. Oh, há actores que eu vi representar, e que ouvi serem elogiados com grandes e fervorosos louvores, e que não tinham pronúncia de cristão, nem figura de cristão, nem de pagão, nem de ser humano, e que se pavoneavam tanto e berravam tanto, que eu pensei que algum aprendiz, querendo fazer homens, os tinha feito mal, pois eram uma abominável imitação da humanidade.
OPÇÃO – ESCOLHER UM DOS SEGUINTES TEXTOS:
EXCERTO DE “AUTO DA BARCA DO INFERNO” DE GIL VICENTE
BRIZIDA
COMPANHEIRO
Diz que não há-de vir cá sem Joana de Valdeis.
DIABO
Entrai vós, e remareis.
BRIZIDA
Não quero eu entrar lá.
DIABO
Que saboroso arrecear!…
BRIZIDA
Não é essa barca a que eu cato.
DIABO
E trazeis vós muito fato?
BRIZIDA
O que me convém levar.
DIABO
Que é o que haveis de embarcar?
BRIZIDA
Seiscentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que não podem mais levar.
Três armários de mentir,
e cinco cofres de enleios
e alguns furtos alheios
assi em jóias de vestir;
guarda-roupa de encobrir,
enfim – casa movediça;
um estrado de cortiça
com dez coxins de embair
A mor carrega que é:
essas moças que vendia.
Daquesta mercadoria
Trago em muita, à bofé!
DIABO
Ora ponde aqui o pé.
BRIZIDA
Hui! eu vou para o Paraíso!
DIABO
E quem te dixe a ti isso?
BRIZIDA
Lá hei-de ir desta maré.
Eu sou uma mártel tal,
açoutes tenho eu levados
e tormentos suportados
que ninguém foi igual.
Se eu fosse ao fogo infernal
Lá iria todo o mundo!
E estoutra barca cá em fundo
me vou eu, que é mais real.
Barqueiro, mano, meus olhos,
prancha a Brizida Vaz!
ANJO
Eu não sei quem te cá traz…
BRIZIDA
Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos
anjo de Deus, minha rosa?
Eu sou Brizida a preciosa
que dava as moças aos molhos.
A que criava as meninas
para os cónegos da Sé…
Passai-me por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olhos de perlinhas finas!
E eu sou apostolada,
angelada e martelada,
e fiz obras mui divinas
Santa Úrsula não converteu
tantas cachopas como eu:
todas salvas po-lo meu,
que nenhuma se perdeu
E prouve àquele céu
que todas acharam dono.
Cuidais que dormia eu sono?
Nem ponta! … E não se perdeu.
EXCERTO DE “ESOPO” DE ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA
XANTO – Vamo-nos assentando sem cerimónia, que nos banquetes não há mestres, nem discípulos. Mandei a Esopo que me pusesse nesta mesa a melhor cousa do mundo; veremos com que ele se desempenha.
PERIANDRO – Com alguma parvoíce. Se vossa mercê se fiou da sua eleição, ficaremos em jejum.
ÉNIO – Vamos nós comendo o que está na mesa, pelo sim, pelo não, que ele já tarda.
SAI ESOPO COM UM PRATO
ESOPO – Eis aqui a melhor cousa do mundo.
XANTO – Descobre, e veremos.
ESOPO – É um prato de línguas.
XANTO – Um prato de línguas? Como? Pois isso é a melhor cousa do mundo?
ESOPO – Qual é a dúvida que a melhor cousa do mundo é a língua? Que cousa mais necessária no homem que a língua? Sem língua, ninguém pode falar; sem falar, ninguém se entende. A língua é a alma dos conceitos, é o corretor dos comércios, é a taramela das portas da boca, é prancha dos comeres, é o esgaravator das gengives, é o zaragatoa dos beiços, o planeta do céu da boca, e o badalo da campainha. Com a língua se lambe um prato; com a língua faz o arrieiro a célebre cantiga, &C. Enfim, a língua do cão é o melhor remédio das chagas, e o linguado o melhor peixe dos mares. Não sei que mais queria dizer, que o tinha debaixo da língua.
XANTO – Nada nos dizes de novo, que bem sabemos que a língua é o oráculo do homem; porém, havemos só comer línguas?
ESOPO – Senhor, muitos comem do que falam.
PERIANDRO – Esopo fez o que lhe mandaram, como bom servo.
XANTO – Uma vez que a melhor cousa do mundo são as línguas, traze-me agora aqui a pior cousa do mundo.
ESOPO – Com muito gosto; eu venho já. (vai-se)
PERIANDRO – É lástima que seja cativo quem tem tão livre juízo para discorrer.
ÉNIO – Não é essa a primeira sem-razão da natureza.
XANTO – Que diabo fazes, Esopo?
ESOPO – Eis aqui a pior cousa do mundo (sai).
XANTO – Que é isso que trazes?
ESOPO – Outro prato de línguas.
XANTO – Pois como?! Se a melhor cousa do mundo são as línguas, como agora as línguas são a pior cousa do mundo?
ESOPO – É filósofo, e não sabe que, sendo uma língua boa a melhor cousa do mundo, a pior é uma língua má? Uma língua má é estrago da honra; ela é a mãe dos mexericos, o pai dos enredos, a irmã das discórdias, a perturbadora da paz, o clarim da guerra, a sarna do sossego, a carepa das consciências, o despertar das vinganças e o instrumento da alcovitice. Não é assim, Senhor Xanto?
XANTO – Dizes bem; eu te perdoo a peça; e, pois não há outro remédio, vamos comendo essas línguas e bebendo duas pingas. Ora lá vai à saúde de vossas mercês! (bebe).
ESOPO – Isso me parece bem; acendam-se no templo da barriga as alâmpadas de Baco.
PERIANDRO – Lá vai à saúde da Senhora Eurípedes. (bebe)
ESOPO – Periandro, lá vai; já me entendeis. (bebe).
PERIANDRO – Vá, eu correspondo. (bebe).